sexta-feira, 30 de maio de 2014

Kinder Ovo: mais caro ou mais barato?



Em certas ocasiões nos deparamos com a frase: “que saudades da época que o Kinder Ovo era R$ 1,00”. Muitas vezes essa afirmação vem acompanhada de considerações sobre a inflação no período e dos níveis de renda. Muitos de nós, enquanto futuros economistas, ficamos em dúvidas sobre essas apreciações e com muita ânsia por saber a resposta. Será realmente que o Kinder Ovo ficou mais caro do fim da década de 1990 para cá? Perguntamo-nos. Para responder essa pergunta é necessário observar o contexto econômico de duas décadas atrás. 

    Tomemos como base de comparação o ano de 1999, período de início do regime de metas de inflação que vigora até hoje. Nesse ano o real sofreu forte desvalorização. O sistema de câmbio foi alterado de semi-fixo para flutuante. Essa desvalorização foi necessária para corrigir distorções que o próprio Plano Real criou em 1994 ao controlar a inflação baseado num sistema de âncora cambial, ao qual equivalia o Real a 1 dólar norte-americano. Preço visivelmente sobrevalorizado. Portanto, a fim de manter a credibilidade desse esquema outras duas âncoras necessitavam ser implantadas: a âncora monetária, ou seja, manter uma política de elevadas taxas de juros com o intuito de atrair artificialmente recursos externos ao país, de modo a proporcionar os dólares necessários para sustentar a paridade com o Real; e a âncora fiscal, isto é, para captar recursos externos, era necessário nutrir os investidores estrangeiros com elevados superávits primários. Nesse sentido, a explosão da dívida, as políticas de privatizações e saneamento das contas públicas do período obtém sentido, dentro do arranjo arquitetado.

      A ideia de controlar o nível de preços, portanto era simples. Ao equiparar o Real a 1 dólar, o mercado interno seria inundado por produtos estrangeiros (como o Kinder Ovo, por exemplo[1]), pois as importações ficariam mais baratas. Assim os preços cairiam, mas não sem custos sociais pesadíssimos, entre eles, destruição de vários setores da indústria e elevadas taxas de desemprego.  

    Além disso, com o real sobrevalorizado, a balança comercial passou a apresentar constantes déficits, bem como no saldo em transações correntes. O Brasil estava sendo continuamente descapitalizado, o esquema montando em 1994 ruía. Dessa maneira, a desvalorização de 1999 aliviou as contas externas e desafogou o capital, ao rebaixar o custo unitário do trabalho cotado em dólar[2].

    A partir daí, entende-se em determinada medida porque os produtos importados ficaram mais caros, quando comparado com os demais produtos da economia. Logo, estamos aqui falando de preços relativos. Para exemplificar esse movimento voltamos ao Kinder Ovo, que em 199 custava R$ 1,00 e atualmente custa ao redor de R$ 4,00. Um aumento de 300%. Para comparação, o IPCA acumulado no período é de 161,61%.

     Mas para que nosso diagnóstico seja capaz de afirmar se o Kinder Ovo ficou mais caro ou mais barato em termos relativos é necessário observar o crescimento de rendimento do Brasil no período. Para isso tomamos outras três variáveis de análise do nível de renda, cada qual capaz de se associar com estratos diferentes da população, são eles: o salário mínimo, o salário mediano e o salário médio.

   O salário mínimo está conectado a parcela da população mais pobre, aos trabalhadores subempregados, que muitas vezes não recebem rendimentos fixos. A mediana do salário, ao dividir as faixas inferiores e superiores de renda, relaciona-se com aquela população trabalhadora, cuja relação empregatícia já pode ser considerada formalizada. Dentre as três variáveis é a fotografia mais fiel do nível de renda dos brasileiros, visto que a economia informal vem diminuindo e o salário médio sofre severas deformidades. Este, por fim, associa-se, ao conjunto mais rico da população, justamente por suas distorções que tendem a elevá-lo, aos empresários e profissionais liberais.

    A tabela abaixo mostra essas informações. Infelizmente, o salário mediano para o ano de 1999 não está disponível. Agregamos a ela também o preço da cesta básica, como maneira de representar o gasto mínimo de subsistência do trabalhador. 

Ano
Salário mínimo
Salário mediano nominal
Salário médio nominal
Preço da cesta básica
Preço do kinder ovo
1999
 R$            130,00
 -
 R$           449,00
 R$                          125,34
 R$                           1,00
2006
 R$            350,00
 R$                       597,62
 R$       1.039,24
 R$                          215,19
 R$                           2,70
2014
 R$            724,00
 R$                   1.198,28
 R$       1.983,80
 R$                          345,63
 R$                           4,00

Fonte: DIEESE, PROCON e IBGE.

      Na tabela a seguir estão as respectivas variações entre o ano de 1999 e 2014 dos valores acima

Comparação
Salário mínimo nominal
Salário médio nominal
Preço da cesta básica
Preço do Kinder Ovo
Variação 1999-2014
456,92%
341,83%
175,75%
300,00%



     É possível perceber o aumento do poder de compra mais do que proporcional da parcela da população mais pobre em relação às outras parcelas a partir do incremento relevante do salário mínimo maior que os dos demais. Também é observável que houve uma elevação real dos salários no período tendo em conta que a inflação acumulada foi de 161,61%.

     No que diz respeito ao preço relativo do Kinder é possível afirmar que ele ficou mais barato, apesar do seu aumento de 300%. Isso fica mais claro na tabela a seguir que compara a a razão entre o preço do Kinder Ovo e das demais variáveis. 

Fatias
Salário mínimo
Salário mediano nominal
Salário médio nominal
Preço da cesta básica
Fatia do Kinder ovo 1999
0,77%
-
0,22%
0,80%
Fatia do Kinder ovo 2006
0,77%
0,45%
0,26%
1,25%
Fatia do Kinder ovo 2014
0,55%
0,33%
0,20%
1,16%

 

      No salário mínimo a redução da proporção entre 1999 e 2014 foi de 0,22p.p. e no salário nominal foi de 0,02p.p. Com o salário mediano a comparação só é possível de 2006 para cá, aí a redução foi de 0,12p.p., contra os mesmos 0,22p.p. do salário mínimo e os 0,06p.p. do salário médio. 

     Entretanto, é interessante dar-se conta que a participação do Kinder Ovo no preço da cesta básica subiu, e subiu 0,46p.p., mais que a queda das outras participações. Dessa observação se pode chegar a outra conclusão interessante e bem mais sutil: é possível afirmar que o Kinder Ovo se converteu e um produto mais elitista, um produto para os estratos superiores da população consumir. Isso porque em termos de preço relativo o Kinder Ovo ficou mais caro que os demais alimentos e certamente que os demais chocolates. Por isso, os estratos com renda mais baixa preferirão consumir outros tipos de doces e alimentos mais baratos, dado a natureza supérflua do Kinder Ovo, e utilizar o maior incremento de renda obtido no período para gastar com outras mercadorias mais essenciais, que antes essas pessoas não possuíam, como eletrodomésticos e automóveis.
     Talvez, essa última conclusão explique porque o Kinder Ovo, apesar de ter ficado mais barato em termos relativos a renda, converteu-se no exemplo máximo da alta do preços.  Porque esse produto restringiu sua demanda. Antes, a pessoas comprava Kinder Ovo e não podiam comprar eletrodomésticos (e não podiam porque o preço da cesta básica, o limite mínimo de subsistência, correspondia a 96,4% do salário mínimo, atualmente corresponde a 47,7%); hoje as pessoas preferem comprar eletrodomésticos ao Kinder Ovo. Claro, que essa expansão do consumo tem limites, mas isso é assunto para o próximo texto.


[1] A Ferrero só produz no Brasil o produto Nutella e os bombons Ferrero Rocher. Há planos de se produzir nacionalmente o Kinder Ovo a partir do primeiro trimestre de 2015. Para mais informação sobre o assunto: http://www.valor.com.br/empresas/3486656/ferrero-rocher-faz-aporte-recorde-em-mg


[2] Quanto mais alta essa variável, maiores os custos para produzir uma unidade de mercadoria; funciona como uma espécie de “medida de competitividade” (no mainstream) ou algo próximo taxa de mais-valia em termos marxistas, das economias mundiais quando comparado com suas respectivas produtividades.

Um comentário: