Em certas
ocasiões nos deparamos com a frase: “que saudades da época que o Kinder Ovo era
R$ 1,00”. Muitas vezes essa afirmação vem acompanhada de considerações sobre a
inflação no período e dos níveis de renda. Muitos de nós, enquanto futuros
economistas, ficamos em dúvidas sobre essas apreciações e com muita ânsia por
saber a resposta. Será realmente que o Kinder Ovo ficou mais caro do fim da
década de 1990 para cá? Perguntamo-nos. Para responder essa pergunta é
necessário observar o contexto econômico de duas décadas atrás.
Tomemos
como base de comparação o ano de 1999, período de início do regime de metas de
inflação que vigora até hoje. Nesse ano o real sofreu forte desvalorização. O
sistema de câmbio foi alterado de semi-fixo para flutuante. Essa desvalorização
foi necessária para corrigir distorções que o próprio Plano Real criou em 1994
ao controlar a inflação baseado num sistema de âncora cambial, ao qual
equivalia o Real a 1 dólar norte-americano. Preço visivelmente sobrevalorizado.
Portanto, a fim de manter a credibilidade desse esquema outras duas âncoras
necessitavam ser implantadas: a âncora monetária, ou seja, manter uma política
de elevadas taxas de juros com o intuito de atrair artificialmente recursos
externos ao país, de modo a proporcionar os dólares necessários para sustentar
a paridade com o Real; e a âncora fiscal, isto é, para captar recursos
externos, era necessário nutrir os investidores estrangeiros com elevados
superávits primários. Nesse sentido, a explosão da dívida, as políticas de
privatizações e saneamento das contas públicas do período obtém sentido, dentro
do arranjo arquitetado.
A
ideia de controlar o nível de preços, portanto era simples. Ao equiparar o Real
a 1 dólar, o mercado interno seria inundado por produtos estrangeiros (como o
Kinder Ovo, por exemplo[1]),
pois as importações ficariam mais baratas. Assim os preços cairiam, mas não sem
custos sociais pesadíssimos, entre eles, destruição de vários setores da
indústria e elevadas taxas de desemprego.
Além
disso, com o real sobrevalorizado, a balança comercial passou a apresentar
constantes déficits, bem como no saldo em transações correntes. O Brasil estava
sendo continuamente descapitalizado, o esquema montando em 1994 ruía. Dessa
maneira, a desvalorização de 1999 aliviou as contas externas e desafogou o
capital, ao rebaixar o custo unitário do trabalho cotado em dólar[2].
A
partir daí, entende-se em determinada medida porque os produtos importados
ficaram mais caros, quando comparado com os demais produtos da economia. Logo,
estamos aqui falando de preços relativos. Para exemplificar esse movimento
voltamos ao Kinder Ovo, que em 199 custava R$ 1,00 e atualmente custa ao redor
de R$ 4,00. Um aumento de 300%. Para comparação, o IPCA acumulado no período é
de 161,61%.
Mas
para que nosso diagnóstico seja capaz de afirmar se o Kinder Ovo ficou mais
caro ou mais barato em termos relativos é necessário observar o crescimento de
rendimento do Brasil no período. Para isso tomamos outras três variáveis de
análise do nível de renda, cada qual capaz de se associar com estratos
diferentes da população, são eles: o salário mínimo, o salário mediano e o
salário médio.
O
salário mínimo está conectado a parcela da população mais pobre, aos
trabalhadores subempregados, que muitas vezes não recebem rendimentos fixos. A
mediana do salário, ao dividir as faixas inferiores e superiores de renda, relaciona-se
com aquela população trabalhadora, cuja relação empregatícia já pode ser
considerada formalizada. Dentre as três variáveis é a fotografia mais fiel do
nível de renda dos brasileiros, visto que a economia informal vem diminuindo e
o salário médio sofre severas deformidades. Este, por fim, associa-se, ao conjunto
mais rico da população, justamente por suas distorções que tendem a elevá-lo,
aos empresários e profissionais liberais.
A
tabela abaixo mostra essas informações. Infelizmente, o salário mediano para o
ano de 1999 não está disponível. Agregamos a ela também o preço da cesta
básica, como maneira de representar o gasto mínimo de subsistência do
trabalhador.
Ano
|
Salário
mínimo
|
Salário
mediano nominal
|
Salário
médio nominal
|
Preço
da cesta básica
|
Preço
do kinder ovo
|
1999
|
R$
130,00
|
-
|
R$
449,00
|
R$ 125,34
|
R$ 1,00
|
2006
|
R$
350,00
|
R$ 597,62
|
R$
1.039,24
|
R$ 215,19
|
R$ 2,70
|
2014
|
R$
724,00
|
R$ 1.198,28
|
R$
1.983,80
|
R$ 345,63
|
R$ 4,00
|
Fonte: DIEESE, PROCON e IBGE.
Na
tabela a seguir estão as respectivas variações entre o ano de 1999 e 2014 dos
valores acima
Comparação
|
Salário
mínimo nominal
|
Salário
médio nominal
|
Preço
da cesta básica
|
Preço
do Kinder Ovo
|
Variação 1999-2014
|
456,92%
|
341,83%
|
175,75%
|
300,00%
|
É
possível perceber o aumento do poder de compra mais do que proporcional da
parcela da população mais pobre em relação às outras parcelas a partir do
incremento relevante do salário mínimo maior que os dos demais. Também é
observável que houve uma elevação real dos salários no período tendo em conta
que a inflação acumulada foi de 161,61%.
No
que diz respeito ao preço relativo do Kinder é possível afirmar que ele ficou
mais barato, apesar do seu aumento de 300%. Isso fica mais claro na tabela a
seguir que compara a a razão entre o preço do Kinder Ovo e das demais
variáveis.
Fatias
|
Salário
mínimo
|
Salário
mediano nominal
|
Salário
médio nominal
|
Preço
da cesta básica
|
Fatia do Kinder ovo 1999
|
0,77%
|
-
|
0,22%
|
0,80%
|
Fatia do Kinder ovo 2006
|
0,77%
|
0,45%
|
0,26%
|
1,25%
|
Fatia do Kinder ovo 2014
|
0,55%
|
0,33%
|
0,20%
|
1,16%
|
No
salário mínimo a redução da proporção entre 1999 e 2014 foi de 0,22p.p. e no
salário nominal foi de 0,02p.p. Com o salário mediano a comparação só é
possível de 2006 para cá, aí a redução foi de 0,12p.p., contra os mesmos
0,22p.p. do salário mínimo e os 0,06p.p. do salário médio.
Entretanto,
é interessante dar-se conta que a participação do Kinder Ovo no preço da cesta
básica subiu, e subiu 0,46p.p., mais que a queda das outras participações.
Dessa observação se pode chegar a outra conclusão interessante e bem mais
sutil: é possível afirmar que o Kinder Ovo se converteu e um produto mais
elitista, um produto para os estratos superiores da população consumir. Isso
porque em termos de preço relativo o Kinder Ovo ficou mais caro que os demais
alimentos e certamente que os demais chocolates. Por isso, os estratos com
renda mais baixa preferirão consumir outros tipos de doces e alimentos mais
baratos, dado a natureza supérflua do Kinder Ovo, e utilizar o maior incremento
de renda obtido no período para gastar com outras mercadorias mais essenciais,
que antes essas pessoas não possuíam, como eletrodomésticos e automóveis.
Talvez,
essa última conclusão explique porque o Kinder Ovo, apesar de ter ficado mais barato
em termos relativos a renda, converteu-se no exemplo máximo da alta do
preços. Porque esse produto restringiu
sua demanda. Antes, a pessoas comprava Kinder Ovo e não podiam comprar
eletrodomésticos (e não podiam porque o preço da cesta básica, o limite mínimo
de subsistência, correspondia a 96,4% do salário mínimo, atualmente corresponde
a 47,7%); hoje as pessoas preferem comprar eletrodomésticos ao Kinder Ovo.
Claro, que essa expansão do consumo tem limites, mas isso é assunto para o
próximo texto.
[1] A Ferrero
só produz no Brasil o produto Nutella e os bombons Ferrero Rocher. Há planos de
se produzir nacionalmente o Kinder Ovo a partir do primeiro trimestre de 2015.
Para mais informação sobre o assunto: http://www.valor.com.br/empresas/3486656/ferrero-rocher-faz-aporte-recorde-em-mg
[2] Quanto mais
alta essa variável, maiores os custos para produzir uma unidade de mercadoria;
funciona como uma espécie de “medida de competitividade” (no mainstream) ou algo próximo taxa
de mais-valia em termos marxistas, das economias mundiais quando comparado com
suas respectivas produtividades.
excelente texto
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